”Se reabrirmos, vamos ter até 6 mil mortes por dia”, prevê biomédico
Enquanto as últimas semanas foram de indicadores da pandemia da COVID-19 muito acima das médias apresentadas na crise sanitária até aqui, com colapso dos sistemas de saúde Brasil afora e recordes quase que diários, uma flexibilização comercial, discutida por prefeituras e estados, pode elevar o número de casos e mortes ainda mais. Estimativas do biomédico e comunicador científico Lucas Zanandrez apontam para até 6 mil óbitos diários no país se as atividades forem reabertas em momento em que o patamar de casos e mortes já está muito alto, com autoridades atestando 3 mil vidas perdidas a cada 24 horas, como ocorreu nas últimas semanas (ontem, as mortes bateram recorde, com 4.195 registros no país).
“Temos uma fila de pacientes esperando leitos de UTI (unidade de terapia intensiva), que têm alto risco de morrer se não forem assistidos. Soma-se a isso a possibilidade de uma reabertura, que vai resultar em mais casos. Além das mortes indiretas do colapso. Esse cenário de 6 mil mortes é o pico”, diz Lucas Zanandrez, que é mestre em inovação tecnológica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e fundador do Olá, Ciência!, canal do YouTube com 559 mil inscritos, em entrevista ao Estado de Minas. A receita para evitar esse quadro ainda mais catastrófico que o atual, para Lucas Zanandrez, passa apenas por uma alternativa: um lockdown nacional, a exemplo do que foi feito em Araraquara (SP).
O senhor tem defendido o lockdown (fechamento total das atividades comerciais) para frear casos e mortes por COVID-19. Por que essa seria a alternativa mais viável para o momento?A gente hoje tem visto o número de mortes escalando a níveis assustadores. Estamos com uma média de 3 mil óbitos diários. Isso é reflexo de vários fatores, entre eles, as aglomerações do início do ano, as reuniões familiares e os fechamentos mal realizados, com praias abertas. Não há uma coordenação para um fechamento realmente eficaz. Somado a isso, já registramos 90 mil casos diários (número de 31 de março), o que é assustador, e temos uma fila para leitos de UTI. Acontece que nessa fila a mortalidade da COVID-19 é maior que a taxa natural. Então, ela escala muito rapidamente se a gente não fizer o lockdown, que é a medida mais eficiente para frear a transmissão e fazer o sistema de saúde respirar. Se uma pessoa precisa de um respirador, mas não tem essa opção, a morte dela é quase certa. São 6,3 mil pessoas aguardando um leito, conforme o último dado a que tive acesso. Temos uma estabilização da curva no alto. Ela deu uma desacelerada, então, já há muitos estados, Minas Gerais mesmo, com uma discussão para uma reabertura. Se a gente reabrir neste momento, sem que a curva caia, ela vai voltar a subir, como aconteceu no ano passado, porém, vamos ter até 6 mil mortes diárias.
Qual seria a duração do lockdown que o senhor propõe?O lockdown de que estou falando é trancar totalmente, ficar em casa. Não é um lockdown de seis meses, mas de 21 dias. Esse prazo é suficiente para você começar a ver efeito na taxa de transmissão. Ela cai drasticamente. Mas 21 dias não seriam suficientes para zerar os casos no Brasil. Apenas para dar um alento ao sistema de saúde.E como fechar tudo e, ao mesmo tempo, manter a população segura financeiramente?O lockdown não é uma medida satisfatória para todo mundo, porque ela vai acabar lesando muitas pessoas agora. Mas precisamos pensar a longo prazo. Essa medida é a mais eficiente para que o poder público consiga resolver o problema econômico (gerado pela pandemia). Para que isso aconteça, é preciso conceder um auxílio (emergencial) para manter as pessoas em casa. Teria que ser feito um estudo de quanto é suficiente para segurar a população em casa por 21 dias. A gente sabe que muitas pessoas saem de casa para trazer o sustento para sua família. Essas são as que mais sofrem: além do impacto econômico, elas têm mais chance de se infectar.
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O senhor tem feito uma projeção de até 6 mil mortes diárias pela COVID-19 nas próximas semanas. Em que cenário isso aconteceria?Estamos com uma estabilização em torno de 90 mil casos diários. Desses, temos uma letalidade em torno dos 3%. Esses 90 mil casos que aconteceram ontem (31/3), a gente já pode colocar que cerca de 3% dessas pessoas vão morrer daqui a 20 dias. Então, a coisa não vai melhorar (em três semanas). E temos uma fila de pacientes esperando leitos de UTI, que têm alto risco de morrer se não forem assistidos. Soma-se a isso a possibilidade de uma reabertura, que vai resultar em mais casos. Além das mortes indiretas provocadas pelo colapso, daquelas pessoas que, por exemplo, sofrem um acidente e precisam de uma cirurgia de urgência, mas não têm leito à disposição. Esse cenário de 6 mil mortes é o pico. Estamos longe do limite. Mas se mais 10% da população se infectar, a gente pode jogar o número de mortes para muito mais que as 3 mil diárias que estamos vendo.Como o senhor analisa a gestão da pandemia em Belo Horizonte no momento?Falar de decisões sanitárias acaba envolvendo fatores políticos que são externos ao técnico. Tecnicamente, Belo Horizonte agiu, como algumas capitais do país, sobre os números de leitos (para COVID-19). Essa é uma opção, mas não é, a meu ver, a melhor. Você está controlando o número de leitos e abre ou fecha a cidade baseado nas internações. A melhor opção seria controlar a transmissão nas comunidades, nos bairros, fazendo um rastreio de contatos e orientando melhor a população. Não é preciso esperar as pessoas serem internadas para fechar.
Em pronunciamento à TV aberta, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que o Brasil é o quinto país que mais vacinou contra a COVID-19 em números absolutos. Esse dado pode ser visto de maneira positiva?Estamos aquém da nossa capacidade de vacinação. Quando você coloca isso comparado à população que a gente tem, o número por milhão de habitantes, a gente vê que isso é uma propaganda. E não estamos no momento de fazer propaganda, mas de cuidar da população. A gente tem vacinado menos que países como Chile, Estados Unidos, Israel, Reino Unido, Alemanha… Em épocas de vacinação contra a gripe, a gente já imunizou mais de 5 milhões de pessoas por dia. Por que não estamos fazendo isso? Por causa de uma série de falhas nos últimos meses e por não ter uma soberania sanitária. Isso tem muito a ver com falta de investimento em tecnologia. O conhecimento temos aqui, mas falta a infraestrutura para colocá-lo em prática.
Ainda sobre a vacinação, uma parcela da população tem defendido que a população economicamente ativa deveria ser priorizada, já que é ela quem sai mais de casa. Qual a análise do senhor sobre esse argumento?O que a gente sabe sobre as vacinas é que elas são muito boas para evitar as formas grave, moderada e leve da doença. Mas a gente não consegue garantir que as vacinas impeçam a transmissão. Por isso, vacinar a população mais jovem é uma estratégia muito arriscada. As pessoas mais jovens, ainda que protegidas, podem continuar levando a doença para os idosos, que têm maior risco de morrer, e profissionais de saúde.
O Brasil faz um mapeamento genético do vírus ainda muito restrito. Praticamente não há trabalhos de sequenciamento do genoma do coronavírus país afora. É possível que outra variante significativa já esteja em circulação?Sim, é possível. É uma opinião, não uma definição técnica: mas, eu acredito que já tenhamos algumas variantes circulando no país que possam ser caso de preocupação, que tenham algum grau de escape vacinal e que não foram detectadas. Vale sempre lembrar que esse é um processo natural. À medida que o vírus é transmitido e se replica dentro do corpo das pessoas, ele adquire mutações naturalmente. Essas novas cepas são selecionadas ao longo tempo para que o vírus possa infectar mais pessoas. É o ciclo de vida dele. Quando vacinamos num ritmo lento e colocamos muita gente na rua, estamos dando a receita perfeita para que o vírus sofra mudanças.
O que é o coronavírus
Coronavírus são uma grande família de vírus que causam infecções respiratórias. O novo agente do coronavírus (COVID-19) foi descoberto em dezembro de 2019, na China. A doença pode causar infecções com sintomas inicialmente semelhantes aos resfriados ou gripes leves, mas com risco de se agravarem, podendo resultar em morte.