Governo manobra e adia análise de voto impresso
BRASÍLIA – Depois de uma sessão tumultuada, marcada por alegações de falhas tecnológicas no sistema de votação remota e bate-boca entre deputados, a base do governo teve sucesso em sua manobra para evitar a derrota sobre aquele que é, há tempos, a principal luta política do governo Bolsonaro: a adoção do voto impresso. Ao perceber que a proposta seria rejeitada pela maioria na comissão especial da Câmara que analisa o assunto, os governistas agiram como puderam em conseguiram adiar a votação no último dia antes do recesso parlamentar.
Depois de anunciar a decisão, o presidente do colegiado, Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), afirmou que o parecer será apreciado no dia 5 de agosto, com a volta dos trabalhos no Legislativo federal.
Houve confusão. Após reclamações sobre o funcionamento do sistema de votação, a justificativa oficial para o adiamento foi um pedido do relator, Filipe Barros (PSL-PR), que cobrou mais tempo para fazer alterações em seu parecer. “Foi uma aberração, uma absoluta desonestidade”, disse o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP). “A comissão foi vítima de um bando”, afirmou o petista, que se referiu a Paulo Eduardo Martins como “picareta”.
A deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS) disse que a sessão foi interrompida sem nenhum amparo legal. Por algumas horas, ela ainda tentou retomar a votação. “Deu um golpe. Vamos ficar aqui na comissão tentando organizar um requerimento de autoconvocação daqui uma hora meia ou duas horas”, disse, ao Estadão/Broadcast. Ela, porém, não teve sucesso na tentativa de retomada dos trabalhos da comissão.
A reunião frustrada foi articulada por um conjunto de 18 deputados titulares e um suplente do colegiado, todos resistentes à ideia de mudar o atual sistema da urna eletrônica. O autor do requerimento foi o deputado Hildo Rocha (MDB-MA). A PEC do voto impresso é de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), aliada de primeira ordem de Bolsonaro.
O tema é, certamente, o mais sensível na agenda do presidente. Na semana passada, Bolsonaro ameaçou a não realização das eleições do ano que vem, caso seu projeto de voto impresso seja rejeitado. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, disse o presidente a apoiadores, durante uma de suas paradas de rotina em frente ao Palácio da Alvorada.
Bolsonaro, que nunca apresentou provas das falhas e fraudes que atribui às urnas eletrônicas, transformou o assunto em um cabo de guerra com o Congresso e, principalmente, com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Costuma dizer frequentemente que a disputa de 2018, quando se elegeu, foi fraudada; caso contrário, teria vencido no primeiro turno.
Barroso é um ferrenho defensor do sistema atual de votação sob o argumento de que nunca houve qualquer caso de fraude comprovada na urna eletrônica desde que foi adotada, em 1996.
No mês passado o Estadão/Broadcast revelou que havia maioria da comissão para aprovar o retorno do voto impresso (mais informações nesta página). Dias depois, 11 partidos se articularam para impedir o avanço da proposta, com apoio de ministros do STF, que são contra a mudança. A partir dessa mobilização, houve substituição de vários membros e a comissão mudou de lado. O deputado Aécio Neves (PSDB-MG), por exemplo, foi substituído pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (sem partido-RJ).
Nesta sexta-feira, enquanto o presidente permanecia internado no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, onde passa por exames e tratamento médico por causa de uma obstrução intestinal, o governo colocou sua tropa de choque em campo para evitar a derrota na comissão especial da Câmara. O líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), se mobilizou para orientar a base a votar a favor da retirada de pauta do tema. Seu requerimento foi derrotado. Por isso, o relator, Filipe Barros recorreu a outra manobra e disse que queria fazer “ajustes” no texto. Martins acatou o pedido.
A aprovação no colegiado é o passo mais importante para a proposta, sem a qual a discussão não poderá avançar para os plenários da Câmara e do Senado.
Para lembrar: aliança contra voto impresso une 11 partidos
No dia 26 de junho presidentes de 11 partidos se reuniram e fecharam um posicionamento contra o voto impresso nas eleições de 2022. Os caciques das legendas, incluindo dirigentes partidários de siglas que integram a da base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, decidiram se articular para derrubar a proposta discutida na comissão especial da Câmara. O texto propõe a implantação de um sistema “auditável” de papel nas urnas eletrônicas.
Os 11 partidos que se mobilizaram representam 326 deputados entre os 513 integrantes da Câmara, número suficiente para derrubar a medida. Os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, atuaram para demover os partidos da ideia de aprovar o voto impresso. Moraes assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral no período da eleição de 2022. Barroso é o atual presidente do TSE.
3 perguntas para José Álvaro Moisés, cientista político da USP
1. O que motivou a decisão dos governistas de adiar a votação?
Basicamente, essa decisão reflete um interesse do governo de Jair Bolsonaro em manter o tema na agenda. Não obstante, a conjuntura que se criou com as minúcias que apareceram na CPI da Covid tem a ver também com o resultado das pesquisas nas últimas semanas, que mostram uma queda muito drástica da avaliação do presidente. É uma soma de fatores adversos ao presidente. Veja que, num certo sentido, o modo como o presidente usa este tema em função da campanha eleitoral. Ele está em plena campanha, o que é ilegal, mas o presidente usa o voto impresso para fazer ameaças à democracia.
2. Por que esse é um assunto que se tornou tão disputado?
A razão de fundo, é que, no sistema democrático, embora ela não seja constituída apenas por eleições, ela é um ponto absolutamente central, o coração da matéria. Por meio delas, os eleitores exercem a cidadania. Em outros sistemas, o soberano é o rei, o príncipe, o secretário-geral. Na democracia, os soberanos são eleitores. Mas essa soberania é feita quando os eleitores fazem a escolha. Se você ameaça o processo eleitoral, é uma ameaça à democracia, não às eleições. Não é improvável que Bolsonaro esteja antecipando uma derrota em 2022. Acompanhando a família de outros líderes populistas, ele incorporou o que ocorreu com Trump. A narrativa é que se perder a eleição, houve fraude.
3. O que uma derrota significaria para o governo?
O principal efeito da derrota vai ser o esvaziamento da ameaça às eleições e por outro lado a afirmação de que se as eleições são feitas pelo voto digital, esvazia a retórica e narrativa do presidente que se ele não ganhar a eleição, elas são fraudadas. A derrota mostrará, pelo contrário, que o sistema eleitoral não depende de pessoas que estão na disputa de dirigentes ou autoridades. A questão diz respeito à sociedade como um todo, ao País, e à Constituição, os elementos que fundam o Estado democrático de direito. / LEVY TELES
Estadão.