BRASÍLIA – Em mais uma tentativa de sair do isolamento político, o presidente Jair Bolsonaro fez nesta terça-feira, 31, novo pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV e disse que o efeito colateral do coronavírus não pode ser pior do que a própria doença. O discurso do presidente foi novamente acompanhado por panelaços em vários pontos do País. Uma semana após ter tratado a pandemia como uma “gripezinha”, Bolsonaro, na TV e também mais cedo, em entrevista, distorceu uma declaração do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Gheybresus, para defender o fim da quarentena e dizer que está certo na condução da crise.
“Temos uma missão: salvar vidas sem deixar para trás os empregos. Por um lado, temos que ter cautela com todos, principalmente com os mais velhos. Por outro, temos que combater desemprego que cresce rapidamente. Vamos cumprir esta missão ao mesmo tempo em que cuidamos da saúde das pessoas”, afirmou o presidente. “Infelizmente, teremos perdas neste caminho.” O pronunciamento foi ao ar no mesmo dia em que o País registrou 42 mortes por coronavírus em apenas 24 horas – recorde para um mesmo dia. Já são 5.717 casos confirmados.
Bolsonaro disse ainda ser preciso evitar ao máximo qualquer perda de vida humana. “Como disse o diretor-geral da OMS: todo indivíduo importa. Ao mesmo tempo, devemos evitar a destruição de empregos, que já vem trazendo muito sofrimento para os trabalhadores brasileiros”, disse.
Pela primeira vez, Bolsonaro admitiu, durante o pronunciamento, que não existe vacina ou remédio com eficácia comprovada contra o novo coronavírus e defendeu a necessidade de se preservar ao máximo “a vida e os empregos”. “O vírus é uma realidade, ainda não existe vacina contra ele ou remédio com a eficiência cientificamente comprovada. Apesar da hidroxicloroquina parecer bastante eficaz. O coronavírus veio e, um dia, irá embora”, afirmou.
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Presidente pede união Parlamento, Judiciário e governadores
Sob pressão de seus ministros mais próximos, Bolsonaro baixou o tom e pôs a preocupação com a “vida” no mesmo patamar que o “emprego”. Pediu, ainda, a união do Parlamento, Judiciário, governadores e prefeitos para enfrentar a pandemia. ?Diferentemente do pronunciamento feito na semana passada, porém, Bolsonaro não defendeu explicitamente o fim do isolamento social, medida considerada como mais eficaz no combate à Covid-19. “Não me valho dessas palavaras para negar a importância de medidas de prevenção e controle contra a pandemia”, disse.
Ao longo do dia, Bolsonaro já havia recorrido a declarações do diretor-geral da OMS. Ao defender o retorno ao trabalho, o presidente argumentou que Tedros também tinha tomado essa direção, mas acabou sendo desmentido horas depois pela autoridade da OMS.
Acuado, Bolsonaro procurou afastar comentários de que está em confronto com o ministro da Justiça, Sérgio Moro, a quem já chamou de “egoísta” por não defender o governo, como revelou o Estado. À tarde, após reunião ministerial, ele escalou Moro e o ministro da Economia, Paulo Guedes – que andava sumido – para uma entrevista coletiva, no Palácio do Planalto.
Os dois apareceram ao lado do chefe da Casa Civil, Braga Netto, e do titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que vira e mexe é desautorizado pelo presidente. Durante a entrevista, Braga Netto passou várias vezes uma “cola” para os ministros, com informações sobre o que deveria ser dito distribuídas em pequenos bilhetes.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao lado do ministro da Casa Civil, Braga Netto, em apresentação conjunta do novo modelo de divulgação dos casos de Coronavirus © Dida Sampaio / Estadão O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao lado do ministro da Casa Civil, Braga Netto, em apresentação conjunta do novo modelo de divulgação dos casos de Coronavirus
Apesar da estratégia construída novamente pelo Planalto para unificar o discurso, Mandetta desmentiu Bolsonaro e negou que a OMS tenha defendido o retorno imediato das pessoas ao trabalho. “Nós vamos trabalhar com o máximo de planejamento. E, no momento, nós vamos fazer, sim, o máximo de distanciamento social, o máximo de permanência dentro das nossas residências (…) para que a gente possa chegar ao momento de falar ‘estamos mais preparados e entendemos aonde vamos’”, disse o ministro da Saúde. “Precisamos lançar camadas de proteção, especialmente para os mais frágeis”, endossou Guedes.
O Congresso aprovou o pagamento de R$ 600 mensais para que trabalhadores informais fiquem em casa no período de pico da doença. A lei que oficializa o benefício, porém, ainda não foi sancionada por Bolsonaro e a falta de agilidade nos pagamentos tem despertado críticas. Guedes tampouco deu indicação de quando o dinheiro começará a ser liberado. Até agora, a pandemia provocou 201 mortes no Brasil, que tem 5717 casos confirmados.
Bolsonaro tem mostrado instabilidade emocional nas conversas com interlocutores e avalia que, se as atividades não forem retomadas logo e a economia não reagir, seu governo terá acabado, porque o Brasil vai quebrar. Pela manhã, o presidente disse que o diretor-geral da OMS tinha dito que os empregados informais “têm que trabalhar” na crise. Ao contrário do que ele sugeriu, no entanto, Tedros não fez relação entre trabalho e medidas de isolamento. O presidente também omitiu trecho do discurso em que o diretor-geral da OMS destacou a necessidade de governos de todo o mundo garantirem assistência aos mais vulneráveis.
“Vocês viram o presidente da OMS ontem?”, perguntou Bolsonaro a jornalistas. “O que ele disse, praticamente… Em especial, com os informais, tem que trabalhar. O que acontece? Nós temos dois problemas: o vírus e o desemprego. Não podem ser dissociados. Temos que atacar juntos”, insistiu. Bolsonaro lembrou que chegaram a chamá-lo de “genocida”. “Eu sou genocida defendendo o direito de você levar um prato de comida para casa”, disse ele.
Quando chegou ao “púlpito” instalado diante do Palácio da Alvorada para falar com a imprensa, o presidente carregava folhas de papel sulfite com um texto escrito a mão, que citava o discurso de Tedros. Questionado sobre a necessidade da quarentena defendida por Mandetta, ele se irritou com os repórteres. Um apoiador passou, então, a criticar os jornalistas com xingamentos. Instado a continuar a responder, o presidente estimulou seus simpatizantes a hostilizar a imprensa e mandou que os repórteres ficassem quietos. Diante dessa atitude, os jornalistas se retiraram.
O discurso de Tedros ao qual Bolsonaro se referiu destacava que cada país é diferente e pregava proteção econômica aos mais necessitados. O chefe da OMS, que nasceu na Etiópia, pregou solidariedade e afirmou que as ações governamentais devem considerar as pessoas mais vulneráveis “porque todo indivíduo importa”.
Diante da polêmica, Tedros postou uma mensagem nas redes sociais dizendo que em nenhum momento se posicionou contra medidas de isolamento. “Pessoas sem fonte de renda regular ou sem qualquer reserva financeira merecem políticas sociais que garantam a dignidade e permitam que elas cumpram as medidas de saúde pública para a Covid-19 recomendadas pelas autoridades nacionais de saúde e pela OMS”, escreveu ele.
Panelaços
Assim como na semana passada, o discurso do presidente Bolsonaro desta terça-feira foi seguido de panelaços em ao menos 12 cidades do País: São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Natal, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Belém, Curitiba e Florianópolis. A hashtag (palavra-chave) #panelacocontrabolsonaro era o segundo assunto mais comentado do
Em São Paulo, aos gritos de “Fora Bolsonaro”, manifestantes bateram panelas em todas as regiões da cidade. Há relatos de protestos em bairros como Vila Mariana, Barra Funda, Cidade Tiradentes, Heliópolis, Bela Vista, Santo Amaro, República, Santa Celícia, Pinheiros e Jardins.
Bolsonaro é alvo de panelaços em São Paulo © Tiago Queiroz/Estadão Bolsonaro é alvo de panelaços em São Paulo