Pastores causam embriaguez litúrgica, afirma promotor sobre abuso religioso

Ao pesquisar “abuso de poder religioso” nos portais do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e das cortes regionais equivalentes, o promotor Peterson Almeida Barbosa encontrou 68 resultados. “Apenas igrejas evangélicas eram rés. Não há, sob o ponto de vista estatístico, uma cristofobia”, afirma o autor de “Abuso do Poder Religioso nas Eleições”.

O livro foi citado pelo ministro Tarcisio Vieira no julgamento concluído no último dia 18 de agosto em que o TSE rejeitou criar uma punição específica para candidatos que se valham de estruturas religiosas para influenciar o voto de fiéis -tese proposta pelo ministro Edson Fachin.

Estamos lidando, de acordo com o promotor Barbosa, com pastores “capazes de provocar aquilo que chamo de embriaguez litúrgica”.

Ele aponta exemplos internacionais para lidar com o tema, como a Emenda Johnson, dispositivo da Receita Federal americana que está na mira de Donald Trump e proíbe organizações religiosas de apoiar ou se opor a chapas eleitorais.

“A igreja tem que escolher: continuar a não pagar impostos se abstendo de lançar candidatos”, afirma.

PERGUNTA – Concorda com os argumentos do TSE para derrubar a figura do abuso do poder religioso?

PETERSON ALMEIDA BARBOSA – Sem dúvida. Não existe uma expressa previsão em lei. Abuso seria termos “julgadores legisladores”, que, sob a feição da democracia, implantassem verdadeiro totalitarismo por meio do ativismo judicial, dando vida a tipos não legislados, por mais bem intencionados que fossem.

É importante, contudo, lembrar as palavras de [ministro do STF e do TSE Luís Roberto] Barroso: “Há abuso do poder religioso, não tenho dúvidas”.

Para Barroso, a lei eleitoral já restringe a atuação de igrejas nos pleitos, ao proibir a doação a partidos ou candidatos e a propaganda eleitoral em templos religiosos. Basta?

PAB – Essas proibições têm se mostrado insuficientes para blindar o eleitor em sua liberdade de escolha, com o uso do medo de contrariar a vontade divina ou da igreja caso vote em outro candidato que não seja o ungido por ela.

O enquadramento raramente ocorre. Não se divisa com clareza a “pregação” do proselitismo político, não sendo incomum que púlpitos virem palanques. Por fim, há notícias de drenagem informal de recursos das igrejas para os partidos, até porque dízimos são quase sempre pagos em espécie, o que dificulta o seu rastreamento.

Por que, ao falar de abuso religioso, o foco recai quase sempre nos evangélicos?

PAB – O segmento se diz discriminado. Pesquisa nos portais do TSE e dos tribunais regionais com a expressão “abuso do poder religioso” encontrou 68 resultados. Apenas igrejas evangélicas eram rés. Não há, sob o ponto de vista estatístico, uma “cristofobia”.

Outros números demonstram o interesse evangélico pela política, como o aumento de 70% entre 2010 e 2018 de nomes bíblicos, sobretudo “pastor” nos registros de candidatura. A filiação religiosa vira marketing político.

O sr. fala, em seu livro, sobre “vulnerabilidade econômica e intelectual dos crentes”. O que quer dizer com isso?

PAB – Números do IBGE de 2016 apontam que 29% da população é evangélica. A maioria mulheres, negras, com renda de até dois salários mínimos, residentes na periferia dos grandes centros urbanos, baixa escolaridade. Segundo o Latinobarômetro, o nível de engajamento evangélico é de 82%, muito superior à média das demais confissões religiosas, inclusive no quesito dízimos.

É ingênuo não supor que tais dados não sugiram uma adestração desses oprimidos, verdadeira manipulação de pensamentos protagonizada por mestres de uma linguagem capazes de provocar aquilo que chamo de embriaguez litúrgica. O assistencialismo que o abandono do poder público provoca e o pertencimento que essas igrejas induzem os fragilizam, tornando os pedidos de votos facilmente atendidos.

Jair Bolsonaro, em 2018, foi recebido como “candidato a presidente” na igreja de sua esposa. Configura abuso?

PAB – Uma coisa é dizer: “Esta aqui é a pastora Anna, candidata”. Outra é dizer: “Esta aqui é a pastora Anna, a nossa candidata”. A linha que separa é tênue.

Se diz “nossa igreja se verá representada por aquele irmão”, já muda de figura. O que se verifica é uma instrumentalização recíproca entre igrejas e partidos, nesse sistema de ganhos mútuos.

Os Poderes, especialmente o Parlamento, vão virando puxadinhos dos templos, numa releitura do padroado implantado pelo Estado colonizador português em conluio com a Igreja Católica. Não há nada de original nessa prática, mudaram os personagens.

A apresentação aos crentes de candidatos selecionados na denominação, o uso do slogan “irmão vota em irmão” e até ameaça com o “fogo eterno” devem ser banidos.

Muitas igrejas reclamam de perseguição. Se ambientalistas, ruralistas e outros grupos civis podem ter representação no Congresso, por que elas não?

PAB – A liberdade religiosa é direito fundamental, mas não é ilimitada. Veja o exemplo das Testemunhas de Jeová: não podem receber transfusão de sangue, porém, não estão os médicos desobrigados de fazê-lo quando recomendado o tratamento.

Não quer dizer que religiosos possam realizar pactos ou barganhas cósmicas, funcionando as igrejas como caixas registradoras. Como qualquer grupo de interesses, tem pleno direito de ter representantes ocupando cargos eletivos, o que se questiona é a forma como ascendem ao poder.

Qual a solução usada nos EUA que o sr. cita como bom exemplo?

PAB – Com a Emenda Johnson, está previsto no Código Interno da Receita Federal do país que a não participação na política é condição para manter a isenção fiscal das organizações religiosas. A igreja tem que escolher: continuar a não pagar impostos se abstendo de lançar candidatos.

O sr. defende que religiosos se descompatibilizem de cargos eclesiais caso ingressem na política. É o suficiente? O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, licenciou-se como bispo da igreja de seu tio Edir Macedo, a Universal.

PAB – Não me parece justo que um religioso possa pregar até as vésperas do pleito, provocando uma desigualdade avassaladora entre candidatos não ligados a igreja alguma. Não é proibi-lo de frequentar, até porque sabemos que candidatos em busca de votos rezam para Deus e o Diabo num só dia. Porém, que entrem mudos e saiam calados dos templos.

Quanto a Crivella, representa um típico caso de uso da fé religiosa para ditar políticas públicas, o que é flagrantemente proibido num Estado laico.

Por Anna Virginia Balloussier | Folhapress

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