Criticado de forma infundada por Bolsonaro, sistema eletrônico de votação foi desenvolvido com apoio de técnicos militares e com o objetivo de evitar fraudes – em 26 anos de uso, nenhuma foi comprovada.
© EBC/Agência Brasil – Nas eleições de 1996, 57 municípios brasileiros já contaram com o voto eletrônico. A partir do ano 2000, a abrangência do sistema se tornou nacional.
No fim de 1994, pouco antes de tomar posse da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o então ministro Carlos Velloso conversou informalmente com seu amigo Paulo César Bhering Camarão, analista de sistemas, sobre a possibilidade de, um dia, tornar o sistema eleitoral brasileiro totalmente eletrônico.
Tão logo Velloso assumiu o posto, Camarão foi nomeado secretário de Informática do TSE. O projeto era que em 1996 as urnas eletrônicas já estivessem funcionando ao menos em parte do país.
Havia motivos de sobra para tal decisão. “A questão eleitoral no Brasil sempre foi um desafio, tendo em vista as características geográficas e sociais. Somos um país de extensão continental, onde é desafiador realizar eleições nacionais. [Além disso,] Em termos sociológicos, somos um país que, desde a colonização, foi marcado pela presença de elites locais muito autocentradas em projetos patrimonialistas de exploração econômica e política das localidades, portanto, que têm, desde a origem, um controle muito grande sobre a população”, contextualiza a socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ou seja, as urnas eletrônicas vieram para sanar um conjunto de problemas: acabar com os chamados “votos de cabresto”, agilizar o processo de votação e apuração e, sim, evitar fraudes. Velloso assumiu a presidência do TSE no rescaldo de um escândalo envolvendo cédulas de votação no Rio de Janeiro.
Naquele ano, a Justiça Eleitoral anulou 200 cédulas preenchidas com a mesma caligrafia numa sessão eleitoral carioca. Também acabaram sendo descobertas cédulas falsas, conforme noticiou o Jornal do Brasil em 17 de novembro de 1994.
“Beneficiavam os candidatos a deputado federal Jair Bolsonaro (PPR), Álvaro Valle (PL), Vanessa Felipe (PSDB) e Francisco Silva (PP)”, registrou o jornal. “As cédulas eram feitas de papel mais fino.”
“Comissão de notáveis”
Para que o projeto da urna eletrônica fosse adiante, Velloso decidiu montar uma equipe técnica, chamada oficialmente de Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996. O grupo acabou apelidado pela mídia de “comissão de notáveis”. Conforme elenca a jornalista Fernanda Soares Andrade no livro Tudo o que você sempre quis saber sobre a urna eletrônica brasileira, fizeram parte do grupo especialistas em direito eleitoral e em informática.
De março a agosto de 1995, essa comissão definiu as premissas de como deveria ser a votação eletrônica no país. Então foram designados outros cinco subgrupos, cada qual com uma missão específica para que a operação saísse do papel e fosse colocada em prática. A partir de setembro de 1995, com a parte da técnica já resolvida, foi a vez de um grupo de trabalho ser definido com o objetivo de implantar o sistema e sua logística.
Participação de militares
Se a parte conceitual e técnica teve o comando de pesquisadores do alto escalão do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), a parte operacional contou com participação ativa de militares.
Em documento publicado em 22 de setembro de 1995, Velloso convocou, entre outros, o major Elifas Chaves Gurgel do Amaral, do Departamento de Informática do Ministério do Exército, o capitão-de-corveta Luiz Otávio Botelho Lento, do Ministério da Marinha, além do pesquisador Oswaldo Catsumi Imamura, representando o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), vinculado ao Comando da Aeronáutica.
“Além de participar do desenvolvimento [tecnológico] da urna eletrônica brasileira, a Aeronáutica foi a maior responsável pelo desenvolvimento da logística de distribuição das urnas pelo Brasil”, aponta o jurista Leopoldo Soares, professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Em linhas gerais, as Forças Armadas sempre auxiliaram a Justiça Eleitoral, inclusive transportando as urnas, com equipamentos que permitem que elas cheguem até localidades de difícil acesso, e também prestando serviço de segurança no dia da eleição. Há todo um procedimento, em caso de necessidade [para manter a ordem]”, comenta o jurista Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE e atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral.
Goulart ressalta que “grandes instituições tecnológicas” com relação com as Forças Armadas tiveram papel científico importante no desenvolvimento do sistema.
“Achávamos que havia uma consolidação da democracia brasileira, após as instabilidades da transição [após a ditadura militar]. Acreditávamos que a democracia estava estabelecida”, comenta a cientista política.
Sonho antigo
Dadas as dificuldades de realizar e apurar votações em um país continental e de tantas peculiaridades geográficas, o sonho de um sistema automatizado era antigo. No Código Eleitoral de 1932, a primeira legislação específica do tipo no Brasil, já constava a previsão do “uso das máquinas de votar, regulado oportunamente pelo Tribunal Superior” — segundo texto do artigo 57.
“Desde a criação da Justiça Eleitoral, já se buscava facilitar a forma de votação e de apuração da vontade popular”, reconhece Neves da Silva.
“O Código de 1932 entrou em vigor mais de uma década depois que a IBM se instalou no Brasil, ou seja, quando já se vislumbrava concretamente a existência de máquinas de processamento eletrônico de informações”, acrescenta Soares. “Parece-me razoável que a lei procure antever situações que pareçam possíveis, ainda que não plenamente realizáveis. Na década de 1930 o Brasil estava em franca industrialização, procurando aprimorar o seu parque produtivo. A chegada de empresas de tecnologia e processamento eletrônico de informações possibilitava vislumbrar alguma informatização do processo eleitoral.”
“Apesar de existir em ideia, na prática, não havia tecnologia suficiente para o desenvolvimento de algo assim. Ou não havia interesse”, pontua Andrade, em seu livro.
Em 1958, o inventor Sócrates Ricardo Puntel, do Instituto Brasileiro de Inventores, apresentou para políticos e autoridades uma máquina para votação mecânica, com contagem instantânea de votos. “A máquina foi construída em 18 meses, funcionava por meio de duas teclas e duas réguas que indicavam os cargos a serem preenchidos”, conta a jornalista.
Não foi adiante. Vinte anos mais tarde, o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais chegou a apresentar um novo protótipo de votação automatizada. Segundo Andrade, até então o problema era que “ninguém havia conseguido oferecer um modelo acessível, resistente, facilmente transportável às regiões mais distantes e que assegurasse tanto o sigilo do voto quanto uma apuração confiável”.
No primeiro turno das eleições presidenciais de 1989, os eleitores da cidade de Brusque, em Santa Catarina, de forma experimental, utilizaram computadores para votar. Foi um teste. O modelo não foi adiante, mas, de certa forma, o primeiro passo já estava dado. A partir dali, as cédulas de papel começaram a perder espaços para a tecnologia digital.
Nenhuma fraude comprovada
“Na criação da urna eletrônica, buscou-se o desenvolvimento de um modelo simples, que unisse na mesma peça o processador, tela e teclado, de modo a não criar dificuldade na hora da votação, especialmente para analfabetos. A complexidade da urna está no sistema de proteção, que se desenvolve periodicamente, aprimorando-se”, ressalta Soares.
Nas eleições de 1996, 57 municípios brasileiros já contaram com o voto eletrônico. A partir do ano 2000, a abrangência do sistema — contra o qual jamais uma fraude foi comprovada — se tornou nacional.
Autor: Edison Veiga