Mesmo com reservatórios das hidrelétricas cheios, conta de luz deve subir até 10,4% no próximo ano

Mesmo com os reservatórios das hidrelétricas cheios, os consumidores pagarão mais nas contas de luz no próximo ano. A expectativa é de um aumento médio em todo o país de 6,58%, mas que pode chegar a 10,41%, a depender de discussões jurídicas sobre créditos de impostos que têm sido usados para atenuar os reajustes. É valor acima da inflação prevista para este ano, de 4,53%, e para 2024, de 3,91%. As previsões foram feitas pela Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace).

Os reajustes variam conforme a distribuidora que atende cada região e depende, entre outros fatores, do uso dos créditos. Em alguns estados, como Minas Gerais, eles já foram integralmente utilizados. Por isso, a projeção é que os mineiros tenham aumento de 15% pela Cemig em qualquer cenário.

‘Jabutis’ e penduricalhos

Na Enel, em São Paulo, a conta pode subir de 9% a 12%, a depender dessa decisão judicial. No Rio, os reajustes da Light podem oscilar de 1,34% a 7,61%. Os valores são decididos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). No caso da Light, o reajuste é em março.

“O sistema elétrico está disfuncional, com altas e quedas acentuadas”, avalia o presidente da Abrace, Paulo Pedrosa.

Os números chamam atenção porque os reservatórios das hidrelétricas atingiram o maior volume dos últimos 14 anos, desde 2009, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). No subsistema do Sudeste/Centro-Oeste, o principal do país, o percentual chegou a 64% no dia 30 de novembro. No subsistema Sul, está em 94%, enquanto no Nordeste, está em 53,89%, e no Norte, 48,88%.

Os reservatórios mais cheios deveriam resultar em energia mais barata em razão da menor necessidade de acionamento das termelétricas, que são fontes mais caras. O problema, dizem especialistas, é o crescimento dos chamados “encargos do sistema”, como a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), com subsídios que precisam ser rateados por todos os consumidores.

“O preço não vai cair, mesmo com a melhora do nível das hidrelétricas, porque continuam inserindo penduricalhos na conta de luz. O planejamento do setor está sendo feito pelo Congresso, e não mais pelo Executivo. E tudo é feito à mercê dos grupos de interesse”, afirmou Luiz Eduardo Barata, ex-diretor do ONS e presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia.

Um exemplo de como o Congresso tem interferido aconteceu na semana passada. A Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência um projeto de lei que regulamenta a geração de energia eólica em alto-mar (offshore). O problema é que o texto veio recheado de “jabutis”, ou seja, artigos de lei que pegaram carona no projeto e nada têm a ver com o tema principal da medida. O texto foi ao Senado Federal.

O texto aprovado em plenário foi apresentado pelo deputado Zé Vitor (PL-MG), relator do projeto, a poucos minutos da votação, depois de duas versões terem sido apresentadas em um único dia. Como havia a “urgência” aprovada, nada foi debatido pelas comissões e o texto acabou aprovado por 406 votos a 16.

Pelas contas da Abrace, somente esse PL vai aumentar os custos do sistema em R$ 39 bilhões, com incentivos de todo tipo: renovação de contratos para termelétricas a carvão no Sul do país, fim do preço-teto (limite) para geração de energia a gás em estados onde não há fornecimento do combustível, e reservas de mercado para usinas eólicas e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Esse aumento não começará a incidir em 2024, mas expõe como o setor elétrico continua contratando aumento de custos que impedem o seu melhor funcionamento.

A maior parte desses encargos fica dentro da CDE. Há subsídios para o carvão mineral, para a compra de óleo diesel em locais que não têm acesso ao Sistema Interligado Nacional (SIN), até incentivos para fontes renováveis e famílias de baixa renda. A conta tem aumentado. Segundo dados da Aneel, em 2017, foram R$ 15,99 bilhões direcionados a esse fundo. Este ano, o número já havia saltado para R$ 34,99 bilhões, e nos dois próximos anos pode saltar para R$ 37,16 bilhões e R$ 42,27 bilhões, segundo a Abrace. Tudo vai para a conta de luz.

A diferença nas projeções para os reajustes do ano que vem — de 6,58% a 10,41% — ocorre porque o Congresso aprovou, em 2022, uma lei complementar direcionando aos consumidores um crédito de R$ 60 bilhões, em função de cobrança que foi considerada indevida de ICMS na base de cálculo de PIS/Cofins, na chamada “tese do século”.

A Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia (Abradee) alega que esses recursos são das distribuidoras porque foram elas que pagaram os tributos e entraram com a ação, em 2002. Cerca de R$ 40 bilhões já foram utilizados por várias distribuidoras, o que ajudou na queda média de 8,3% nas contas de luz em 2023. Outros R$ 20 bilhões ainda podem ser direcionados aos consumidores nos próximos anos. A decisão, contudo, está pendente no Supremo Tribunal Federal (STF).

“A tese do século envolveu vários setores da economia, e apenas o setor elétrico teve tratamento diferente, com os recursos sendo direcionados aos consumidores de forma oportunística pelo Congresso, em 2022. A lei que foi aprovada retroagiu a 2019, e é isso que estamos questionando no STF”, afirmou Wagner Ferreira, diretor Jurídico e Institucional da Abradee.

‘Bagunça tarifária’

Na consultoria PSR, as estimativas são de aumento das tarifas acima da inflação entre 3% a 4% no ano que vem. O problema, diz Luiz Augusto Barroso, diretor-presidente da consultoria, é que as contas já estão altas, e os jabutis aprovados pelo Congresso na última semana pioram o ambiente tarifário para os próximos anos.

“A tarifa já está alta e cheia de custos indevidos. Manobras e jabutis aprovados pelo Congresso não só pioram o ambiente de investimentos, porque tiram a previsibilidade institucional, como o planejamento foi transferido para o Congresso. E acaba sendo feito de forma pouco criteriosa. Traz uma bagunça tarifária com mais sinais de aumentos mais para frente”, diz.

Barata destaca que a migração acelerada de consumidores para o “mercado livre” (no qual se escolhe de quem comprar a energia), na prática, vem diminuindo o número de pessoas aptas a custear os encargos do sistema:

“É como um condomínio. Com a migração para o mercado livre pelas grandes empresas, a autoprodução de energia e a geração distribuída, o chamado “mercado cativo”, o das distribuidoras (atendendo determinada região), vem diminuindo. Isso faz com que o reajuste médio seja mais alto.”

Ele estima que o setor elétrico tem custos em torno de R$ 343 bilhões por ano. Desse total, R$ 210 bilhões são de fato custo energético, enquanto R$ 58 bilhões são tributos, e R$ 55 bilhões, encargos. Já as perdas técnicas custam R$ 12 bilhões e os furtos de energia, R$ 7 bilhões.

Globo

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